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"OS SEM-CINEMA"

Cem municípios de Alagoas não possuem salas de cinema; cineastas discutem democratização

Por Maylson Honorato | Edição do dia 05/11/2019

Matéria atualizada em 05/11/2019 às 04h00

Cinema alagoano comemora avanços, mas admite que sétima arte é inacessível para a maioria dos alagoanos
Cinema alagoano comemora avanços, mas admite que sétima arte é inacessível para a maioria dos alagoanos - Foto: Reprodução/Avalanche
 

Neste mesmo ano: cineastas acusam governo federal de travar Ancine; realizadores acionam justiça e denunciam censura em edital audiovisual; ministério da Cultura é extinto por Bolsonaro; Bacurau entra na décima semana em cartaz; Fernanda Montenegro tem chances reais de ser indicada ao Oscar por “A Vida Invisível”; cinema brasileiro acumula seleções em festivais internacionais, incluindo Cannes. O cinema está em evidência desde o primeiro dia de 2019 e, mesmo assim, a democratização da sétima arte como tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) surpreendeu estudantes, professores e cineastas. Com salas convencionais em somente duas cidades do Estado, realizadores alagoanos acreditam que a democratização está longe de ser uma realidade.

Alagoas possui quatro redes exibindo filmes: Cinesystem, Kinoplex, Centerplex e Cinema Lumière. Com exceção do Cinesystem, que também atua em Arapiraca, as salas das demais redes estão concentradas na capital alagoana, todas localizadas em centros de compras. Maceió possui, ainda, o Centro Cultural Arte Pajuçara, que resiste enquanto exibidor independente.

Para Sérgio Onofre, coordenador-geral do Circuito Penedo de Cinema, o fato de 100 outros municípios alagoanos não possuírem salas de cinema inviabiliza o debate acerca de democratização. “A gente tem uma situação bastante complexa e que é uma reprodução do que acontece em âmbito nacional: nossas salas saíram das cidades para ocupar os grandes centros de consumo. Ou seja, só tem acesso ao cinema quem está na capital ou em Arapiraca. Então, como falar em democratização, quando as pessoas não têm acesso nem dinheiro para ir ao cinema? Não é todo mundo que pode ir para Maceió, viajar, para ir no cinema”, refletiu.

Onofre também avaliou a escolha do tema para a redação do Enem, lembrando que discussões sobre a relevância do assunto também estão sendo levantadas. Segundo ele, questões mais gerais ou graves que afetam o país, como as questões ambientais, são relativamente mais recentes, considerando a antecedência com que o Exame Nacional do Ensino Médio é preparado.

“Já essas questões culturais são pautadas desde o começo do ano. E não é à toa. O cinema não ocupou à toa esse espaço, já que no ano passado foi uma das indústrias que mais cresceu, mesmo em meio a ignorância do próprio governo federal, que em todas as ações tenta limitar a democracia, estabelecendo critérios ideológicos, xenófobos, preconceituosos, que mostram um completo desconhecimento da realidade da indústria do audiovisual”, criticou.

O especialista e realizador se refere ao expressivo crescimento do setor audiovisual brasileiro nos últimos anos, pontuando que a indústria cinematográfica tem gerado empregos e atraído investimentos. De 2007 a 2013 o setor cresceu, em média, 8,8%, mais que a economia do Brasil inteiro. Dados da Ancine também revelam que o audiovisual brasileiro contribui com quase 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto), o que corresponde a cerca de R$ 43 bilhões por ano. Segundo a Associação de Produtores Independentes (API), o cinema também emprega 335 mil pessoas de maneira direta e indireta, além de ser responsável por 2,13 bilhões de impostos recolhidos de maneira direta.

NÃO TINHA CINEMA

O jovem cineasta arapiraquense Leandro Alves, que se destacou no ano passado em festivais de cinema do país, relembra o período em que Arapiraca não possuía salas de cinema. “Hoje tem. Mas antes era muito difícil. Entrava um filme em cartaz e a gente não podia ver, simplesmente era inacessível. Eu fui estudar cinema em Campina Grande, voltei em 2012, e já abrimos o Núcleo Audiovisual de Arapiraca, o Navi, que também realiza oficinas de audiovisual, uma maneira de fomentar o acesso contou”, contou. O cineasta está produzindo o primeiro telefilme, “Moto-perpétuo”, ainda sem previsão de estreia.

“Fomos todos pegos de surpresa com o tema dessa redação. Existem dois aspectos a considerar: o primeiro é sobre a democratização do cinema para o público. O segundo é o cinema acessível para realizadores. De maneira geral, temos mais mostras nas periferias, mais incentivos, editais públicos, políticas públicas que precisamos continuar. Ainda estamos muito longe de uma democratização”, pontuou.

O cineasta Rafhael Barbosa também viveu maior parte da adolescência no município de Arapiraca, no agreste alagoano, e conta que não tinha acesso a salas de cinema. Para ele, conviver com diversas oportunidades de acesso à arte é fundamental para a democracia.

“Democratizar o acesso ao cinema é permitir que milhões de pessoas tenham oportunidade de vivenciar uma experiência que é banal e cotidiana para uma pequena parcela da população brasileira. O cinema brasileiro vive hoje o melhor momento de sua história, gozando de reconhecimento e respeito internacional inéditos”, comentou, acrescentando sua interpretação sobre a escolha do tema para a redação do Enem. “A escolha do tema foi muito sensível e inteligente. Primeiro porque fala em democratizar o acesso à cultura, num momento em que tanto o conceito de democracia, quanto o de cultura, têm sido sistematicamente atacados pelo governo federal. Foi também um atestado de liberdade do INEP, que não cedeu à interferência ideológica do MEC”, disse.

EM BREVE

Marcado para ocorrer de 25 de novembro a 1 de dezembro, o Circuito Penedo de Cinema está na 9ª edição. O evento recebe filmes de todo o país, com uma programação gratuita de exibições e oficinas. De acordo com a produção do Circuito Penedo, o evento bateu recorde de filmes inscritos, com 571. O 12º Festival de Cinema Brasileiro registrou a maior quantidade de envios: 401. São 95 inscrições a mais que no ano passado. O Circuito é formado também pelo 9º Festival de Cinema Universitário de Alagoas, pela 6ª Mostra Velho Chico de Cinema Ambiental e pela Mostra Não Competitiva de Cinema Infantil.

“Nos primeiros anos foi muito difícil convencer uma população que por trinta anos não saía de casa à noite. Não saíam para nada, não havia opção. São três décadas, três gerações do Baixo São Francisco sem cinema ou qualquer outra coisa. Mas conseguimos”, conta Sérgio Onofre.

O coordenador do Circuito Penedo também evidenciou que o projeto combate as enfrenta o “problema da democratização” de três maneiras diferentes.

“Primeiro proporcionamos acesso gratuito às produções nacionais. Também trabalhamos com sessões infantis de cinema, atuando, então, na formação do público e proporcionando às crianças a experiência do cinema. E, por fim, estimulamos e provocamos o gosto por fazer cinema através das oficinas”, explicou.

MOSTRA SURURU

De 10 a 15 de dezembro é a vez dos filmes alagoanos brilharem na tela dedicada às produções locais. A Mostra Sururu de Cinema Alagoano chega a 10ª edição e comemora 59 inscritos, de 12 cidades alagoanas. Isso quer dizer que 10 municípios de Alagoas estão produzindo filmes, mesmo sem ter acesso a salas convencionais de cinema.

“O tema da redação sempre vira pauta de discussão nas escolas e eu acredito muito no cinema como uma ferramenta pedagógica. Então, defender a democratização e o acesso levanta uma ótima pauta para se debater dentro da sala de aula. É um tema importante”, pontua Maysa Reis, cineasta, pesquisadora e idealizadora da Mostra Sururu.

Ela diz que, caso participasse do Enem, faria uma observação sobre a exclusão das comunidades periféricas. “Eu falaria da falência dos cinemas nos bairros, a falência do cinema nas periferias, porque é quase inexistente. Muitas pessoas periféricas não assistem ao cinema. As pessoas acham que o cinema brasileiro é só o “auto da compadecida”, e não é”.

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