Desde o estrondoso sucesso do Natal de Folguedos do ano passado, a Fundação Municipal de Ação Cultural (Fmac) vêm intensificando o repertório de eventos culturais de grande porte no município. Eventos análogos à Bienal Internacional do Livro no Jaraguá, no início deste ano, foram somente o começo. A prefeitura pretende, agora, reestruturar o tradicional Xangô Rezado Alto, transplantando o cortejo do Centro da capital para a orla marítima, onde ele terá maior visibilidade. Nomes ligados a pontos nevrálgicos do evento discordam da mudança, inclusive o próprio idealizador do projeto, Edson Bezerra. Doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), partiu de Edson a ideia de, em 2012, realizar um evento rememorando o centenário da histórica Quebra de Xangô. Em 12 de fevereiro de 1912, uma milícia denominada Liga dos Republicanos Combatentes, ligada à um partido de oposição do então governador Euclides Vieira Malta, acusado de conexão com denominações religiosas africanas, começou uma campanha de invasão e destruição de terreiros de religiões de matriz africana. “Não houveram mortes, na verdade só uma. Uma morte muito dura: a morte da tradição”, disse o professor Fernando Gomes à Gazeta, autor de um dos livros mais importantes sobre o Quebra. Técnico da Fmac, Keiler Simões defendeu a alteração: “Com a chegada das festividades de Carnaval, transportar o evento para a orla aumenta muito a visibilidade do evento, importante para o combate à intolerância”, explica. O professor Fernando Gomes discorda: “Não se pode só folclorizar, como uma brincadeira. (Deve ser) mais como um cortejo do momento que aconteceu”, disse, apontando o evento como um lembrete da dívida histórica que se tem com os negros do estado e do Brasil. No novo roteiro, o evento começará na Avenida Silvio Vianna, conhecida popularmente como Rua Fechada, e terminará próximo a feirinha de artesanato da Pajuçara, onde haverá um palco na qual seis grupos culturais se apresentarão. Edson Bezerra acredita que a transferência do evento para um outro local é parte de um processo de apagamento da memória negra no país. “É uma folclorização da cultura negra”, disse. O idealizador do evento acredita que a transferência para a orla marítima é uma mercantilização de um projeto que deveria ser de resistência. “Nesse momento político, principalmente, é importante”, conclui. O nome Xangô Rezado Alto vem do xangô rezado baixo, como as reuniões das religiões ficaram conhecidas após a Quebra de Xangô. A cautela com o volume das festividades e cultos era relacionada ao medo de uma repetição. “Eles tinham que fazer tudo sem barulho. Para não atrair atenção, para não acordar ninguém”, explica o professor Gomes.
APESAR DO PERDÃO
Geraldo de Majella, um dos participantes na articulação da primeira edição do evento, acredita que o avanço após mais de cem anos não foi de acordo com o esperado. “Ainda há invasões a terreiros, inclusive pela polícia. Relatos de intolerância religiosa ainda são extremamente comuns”, conta. Em 2011, Majella foi o responsável por articular com o então governador de Alagoas, Teotônio Vilela, um perdão oficial do Estado aos praticantes das religiões afro. “Os primeiros eventos aconteceram lá [no Centro]”, reclamou Majella. “Será muito mais um espetáculo para os turistas”. O historiador foi presidente da Fundação Universidade Estadual de Alagoas (Funesa), que hoje é a Uneal. Na primeira edição do evento, ele estava sob alçada da Uneal. O financiamento veio majoritariamente do Ministério da Cultura do Governo Federal, cerca de R$ 250 mil, pouco mais de 10% veio do Governo do Estado, junto do perdão de Teotônio. “Querem transformar um projeto desta dimensão em um Natal dos Folguedos”, protestou Majella. O professor Fernando Gomes ressalta que a Quebra não aconteceu exatamente no circuito atual do evento. Ele explica que o Centro de Maceió era repleto de córregos, e que religiões de matriz africana sempre priorizaram essas regiões, devido à conexão com a água. O primeiro terreiro a ser invadido ficava em uma rua conhecida como Rua do Reguinho, próximo ao Teatro Deodoro. “Eu respeito o que o Edson [Bezerra, idealizador do projeto] expressa [sobre a mudança]”, ressalta. “Os povos preconizam a história oral, não importa para eles se não foi exatamente ali”, diz o professor, reforçando o valor simbólico do percurso do cortejo. “A folclorização [ao olhar externo] independe do local”, opina. Professor de ciências sociais na Ufal e comendador da Cidade de Maceió, o professor Bruno Cesar é crítico do que descreve como uma “política de orla” do poder público. “A cidade começa na Pajuçara e termina na Ponta Verde”, diz, pontuando que na época do Quebra de Xangô a cidade “começava na Praça Sinimbu e terminava na Praça dos Martírios”. Bruno se alinha aos demais especialistas consultados pela reportagem na visão de que a medida é negativa. “Espetacularização da memória” é como descreve a mudança, que na sua visão exclui o restante da cidade da agenda cultural do município. “Há um desrespeito à história, [...] qualquer mudança nessa rota deveria ser resultado de uma demanda da sociedade, e não uma imposição do poder público”.
*Sob supervisão da editoria de Cultura
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