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Maceió,
Nº 5693
HISTÓRIA DE ALAGOAS

QUANDO A TERRA PAROU

Confira a história da última grande pandemia e como a gripe espanhola de 1918 se espalhou por Alagoas e pelo Brasil

Por Maylson Honorato | Edição do dia 28/03/2020

Matéria atualizada em 28/03/2020 às 01h30

Galpão é utilizado como enfermaria para atender e isolar doentes |
Galpão é utilizado como enfermaria para atender e isolar doentes | - Foto: Reprodução
 


Corpos jaziam nas calçadas, famílias inteiras padeciam e não havia hospitais, médicos, nem ao menos coveiros que dessem conta dos cadáveres de homens, mulheres, crianças e idosos, mortos pela misteriosa doença de nome engraçado: gripe espanhola. Essa é a síntese do relato assombroso que a “Gazeta de Notícias”, jornal que circulava no Rio de Janeiro em 1918, estampava na edição do dia 18 de outubro daquele ano, quando se assumia o colapso da saúde e dos governos diante da moléstia.


A pandemia de gripe espanhola começou em 1918 e seguiu até 1920, de acordo com relatos históricos. Apesar de não ter surgido na Espanha, a doença ganhou esse apelido porque, em meio à Primeira Guerra Mundial, os países resolveram minimizar o potencial do influenza H1N1 para não desmobilizar as tropas. A censura em países como Alemanha, Reino unido, França e Estados Unidos estabeleceu que a imprensa somente poderia abordar o flagelo da doença na Espanha, que estava neutra na guerra. Isso passou a impressão de que apenas o povo espanhol estava sofrendo com a gripe… espanhola.


Estima-se que, à época, o vírus tenha infectado 500 milhões de pessoas, o que representava um quarto da população mundial. Os dados históricos e epidemiológicos são imprecisos, mas a gripe pode ter vitimado entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas em todo o globo, e se tornou a epidemia mais mortal da história recente da humanidade. O H1N1 causou uma segunda pandemia, de menor letalidade, em 2009.


A gripe espanhola veio a bordo do transatlântico Demerara, que, sem saber, trouxe passageiros infectados para Recife, Salvador e para o Rio de Janeiro, que era a capital do país. O Jornal do Recife noticiou a chegada do navio, no dia 9 de setembro de 1918. “O Demerara fez boa viagem, sem incidentes dignos de nota, prosseguindo ontem mesmo a viagem para a Argentina [...]”, diz trecho do impresso pernambucano.


Um mês depois, o caos estava instalado no Brasil. “Por toda parte, o pânico, o assombro, o horror!” — exclamou o deputado Sólon de Lucena (PB), de acordo com o arquivo do Senado Federal. “Todas as classes, desde os humildes trabalhadores até aqueles que gozam do maior conforto na vida, foram alcançados pelo flagelo terrível, que bem parece universal”, continuou o deputado em um dos documentos históricos.

Americanos usam máscara ao posar para foto que entraria para a história
Americanos usam máscara ao posar para foto que entraria para a história - Foto: Reprodução

Nesses documentos, também é possível constatar a corrida das autoridades para dar uma resposta à pandemia, com ações como isolamento social, suspensão de aulas e proibição de encontros religiosos, festas e teatros. Também é possível perceber que havia certa descrença sobre o potencial aniquilador da moléstia, além de haver registros sobre a crença de que a gripe mataria mais crianças e idosos, quando, na verdade, metade dos mortos pela doença eram jovens adultos, entre 20 e 40 anos.

— O que vemos são acontecimentos funestos, uma verdadeira hecatombe — resumiu o então deputado Azevedo Sodré (RJ).



ALAGOAS

Os primeiros dias de outubro já alarmavam os nordestinos, com casos confirmados em Pernambuco. Naquela época, embarcações partiam do Recife e faziam escala em Jaraguá, antes de seguirem para o sul do país. A doença pode ter chegado dessa maneira em Maceió. O que se viu nos dias seguintes foi uma sequência de amenizações acerca da letalidade da doença, com jornais repetindo exaustivamente que os casos fatais eram parcos e que a epidemia de influenza, apesar de ser identificada em várias pessoas, não oferecia riscos.


Alguns dias depois, no dia 30 de outubro de 1918, começava uma corrida atrás dos prejuízos causados pela negação. Os doentes eram tantos que se espalharam pelas ruas, pois não havia leitos nos hospitais. O Palácio do Governo de Alagoas convocou uma reunião de emergência para que uma comissão lidasse com a pandemia e proibiu aglomerações públicas, além de acatar medidas que já vigoravam no país, como a prorrogação de prazos de pagamento e higienização das ruas. No dia 1º de novembro, o Diário de Pernambuco noticiava “Até nas vias públicas tem ocorrido óbitos ou agonizam desditosos ‘influenziados’”.


Nos jornais, propagandas de remédios milagrosos (e ineficazes) tomavam as páginas. Não se comprava nada pelo preço justo, o que levou o governo a estabelecer os preços dos medicamentos e das marcadorias básicas. A doença chegou até às autoridades, infectando, inclusive, o governador Fernandes Lima. Nem mesmo o presidente da República foi poupado. Rodrigues Alves, eleito para o segundo mandato, ficou acamado em razão da gripe espanhola, antes mesmo de assumir o cargo. O vice, Delfim Moreira, assumiu interinamente a presidência, mas uma eleição fora de época teve que ser convocada, já que Rodrigues Alves morreu em janeiro de 1919, em decorrência do vírus.


Um levantamento publicado nos jornais, em novembro de 1918, revela que, em dez dias, 172 mortos foram enterrados no Cemitério de Maceió (Nossa Senhora da Piedade). Diversas outras vítimas teriam sido distribuídas entre os cemitérios de Jaraguá e Bebedouro, mas não foram contadas. No dia 13 de novembro de 1918, o governo desapropriou o terreno onde hoje é localizado o Cemitério São José, no Prado, em Maceió, para que servisse como um local provisório para as vítimas fatais da gripe.

Orientações para conter avanço da gripe espanhola eram semelhantes às que hoje são dadas acerca do coronavírus
Orientações para conter avanço da gripe espanhola eram semelhantes às que hoje são dadas acerca do coronavírus - Foto: Reprodução
 


Os jornais informavam mais de mil mortes em Maceió. Cidades do interior também foram atingidas. Penedo, com 80 mortes, teve quase a totalidade da população infectada, mais de 25 mil indivíduos. Pilar, Alagoas (Marechal Deodoro), Atalaia, São Luiz do Quitunde, Anadia, São Miguel dos Campos, Capela, Viçosa, Murici e Rio Largo também registraram centenas de casos. Em Rio Largo, quase todos os operários da Fábrica Progresso estavam contaminados.


A população, ao Deus dará, recorre a um remédio caseiro: cachaça com limão e mel. Difundido como a cura para a gripe espanhola. Em consequência da fake news centenária, os limões somem das quitandas e nasce a caipirinha, de acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça. Coincidentemente, a peça de teatro de maior sucesso em São Paulo, em 1918, se chama A Caipirinha.

Com idas e vindas, a gripe espanhola deixou o Brasil em alerta entre 1918 e 1920, com um relativo controle da situação somente em meados de 1919, quando um fervoroso carnaval tentava exorcizar o clima de fim dos tempos. O final dessa história é bem brasileiro, acabou em samba.


Em 1938, dez anos depois, Carmem Miranda gravava “E o mundo não se acabou”, canção do renomado compositor Assis Valente, que expressava em seus versos a atmosfera daquele período. “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar / Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar / E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada / Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada”.

"E o mundo não se acabou" - samba-choro de Assis Valente - Acompanhamento do Conjuncto Regional; canção foi gravada em 9 de março de 1938 - Junior Oliveira
 


*Com informações da Agência Senado e do site História de Alagoas

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