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CRÍTICA NO B

CORONAVÍRUS, DESEJO E REVOLUÇÃO

Disco surpresa de Baco Exu dos Blues encapsula o zeitgeist da pandemia

Por Luan Oliveira | Edição do dia 02/04/2020

Matéria atualizada em 02/04/2020 às 11h26

Foto: Reprodução
 

Diogo Moncorvo, que responde pelo nome artístico de Baco Exu do Blues, escolheu uma forma interessante de avisar que adiaria o lançamento do seu terceiro álbum, “Bacanal”: lançando um outro álbum. Anunciado como EP, “Não Tem Bacanal na Quarentena” possui 9 faixas e, para todos os efeitos, é um disco completo (plataformas de streaming também negam catalogá-lo como EP).


Após construir uma carreira sólida com discos aclamados por crítica e público, Diogo fundou também sua própria gravadora, a 999, que já assina com diversos artistas do espectro do black music. Já foi premiado em Cannes por seu trabalho e buscava um conceito em seus discos: Esú (2017), Bluesman (2018) e Bacanal (sem lançamento) seriam referências à construção de seu nome artístico. Seus planos, como os de muita gente, foram interrompidos.


É um tanto difícil levar à sério a afirmação de Baco nas redes sociais de que o álbum foi feito em três dias, mas o conteúdo de suas letras diz que ao menos parte do material foi feito no último mês. A pandemia do novo coronavírus e o isolamento social gerado por ela são os pilares do disco. “Coronavírus me lembra a escravidão / Brancos de fora vindo e f****** com tudo”, vocifera em “O Sol Mais Quente”.


A faixa de fechamento, “Amo Cardi B e Odeio Bozo”, também ilustra bem isso. Com sample do grito “coronaváirus” da rapper Cardi B, que se tornou icônico em meio a pandemia, Baco canta: “O Papa é pop, a quarentena é pop / Cardi B fez mais que o presidente / p****, amo o hip-hop”. Em “Preso em Casa Cheio de Tesão”, o flow é catártico, “Longe de você, preta, eu sofro / Que a quarentena acabe antes de agosto / Fecha o olho, sinto seu gosto”.


Nem só de Covid-19 vive o disco, porém, a política nacional e o racismo são parte do repertório lírico. Em “Tudo Vai Dar Certo” somos presenteados com mais uma parceria com 1LUM3, que já colaborou com Diogo em “Me Desculpa Jay-Z”, do antecessor “Bluesman” (2018). Ao fim da faixa, ouvimos os panelaços que fizeram o som de fundo de vizinhanças inteiras do país este mês, aos gritos de “fora Bolsonaro”.


Logo na abertura, em “Jovem Preto Rico”, temos uma linha de Cidade de Deus (dir. Fernando Meirelles, 2002). A faixa reflete a dificuldade que os brancos têm em computar a ascensão social de um homem negro: “jovem negro rico, isso é perigoso”. Diogo, que aos 24 anos já é dono da própria gravadora, 999, sabe bem.


Há momentos de calmaria no disco, como em “Humanos Não Matam”, a faixa mais poética do disco, com referências à Platão e a apropriação da cultura negra. “Ela é Gostosa pra ******” emana desejo na letra e na produção, assinada por Dactes.


“Dedo no ** e Gritaria”, com participação de Young Piva, Celo Dut e Vírus (!) tem produção evocativa aos clássicos do rap dos anos 90 e uma letra que, infelizmente, ecoaria tanto lá quanto hoje. “A rua criando igual reformatório / Jovem negros livres com problemas neurológicos”, dispara Piva.


A capa do CD é uma referência direta ao disco “Ready to Die” (1994), de Notorious BIG. Com título profético, o disco foi o último lançado pelo rapper em vida. BIG foi assassinado em 1997. A criança com black-power foi substituída por um urso de máscara e com um frasco de álcool em gel 70%. Um colar de ouro com o selo “999”, da gravadora de Baco, pende do pescoço do bicho.


Discos de Baco são obras monumentais, talvez por isso o rapper tenha optado pelo adiamento do seu terceiro lançamento, “Bacanal”, devido à pandemia: o lançamento do projeto deve ser grandioso como o dos seus antecessores. Tempo livre deve ter sido uma commoditie que Diogo teve bastante acesso e, por isso, decidiu produzir algo novo para tapar o vácuo.


Justamente por essa natureza tipicamente monumental de seus lançamentos que “Não Tem Bacanal na Quarentena” soa tão miúdo. O Grand-Prix de “Entertainment for Music” do festival de Cannes de 2019 foi para o curta de seu disco, “Bluesman”. A honraria foi dividida com Childish Gambino, pelo grandioso e viral “This is America”. Na ocasião, Baco competia com Beyoncé e JAY-Z, com “The Carters”.


Dada as circunstâncias extremamente excepcionais, não é justo colocar “Não tem Bacanal” lado à lado com o cânone do rapper. Apreciá-lo por si só e por o que ele pretende ser, um cano de escape de toda a tensão e pressão social dos últimos meses, leva a uma experiência mais completa do que aguardar por um novo “Esú” (2017).


Parece um mix confuso dançar com um remix de “Coronavairus” da Cardi B, extravasar o tesão acumulado com os beats sensuais e pedir o impeachment do presidente da república no mesmo trabalho, mas é um reflexo preciso das realidades que conseguimos comprimir no interior de nossas casas ultimamente.


O Kanye West da Bahia conseguiu de novo entregar um excelente trabalho, reduzido para caber no hoje. Apesar do marketing questionável, com afirmações mirabolantes sobre o tempo de conclusão e uma falha técnica esquisita na classificação do escopo do trabalho, o urso na capa do álbum lhe oferece um frasco em gel e clama por um replay, sempre.


Serviço: Não Tem Bacanal na Quarentena
Artista Baco Exu dos Blues
Lançamento: 31 de março de 2020
Onde: Principais plataformas de streaming
Nota: 9/10

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