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Nº 5693
Caderno B

TEM QUE DESENHAR

Premiado chargista alagoano, Adnael Silva fala sobre o desafio de fazer provocações em “tempos sombrios” e das tentativas de censura que a profissão enfrenta

Por MAYLSON HONORATO DIMITRIA PIMENTEL | Edição do dia 12/09/2020

Matéria atualizada em 12/09/2020 às 05h00

Foto: ADNAEL SILVA
 

Foto: ADNAEL SILVA
 

Como uma lembrança perversa dos anos de chumbo, há dois meses o Ministério da Justiça utilizou uma lei redigida durante a ditadura militar para tentar censurar um chargista. É neste mesmo país, o Brasil de 2020, que o premiado chargista Adnael Silva considera desenhar um ato político e discorre sobre o ofício de quem trabalha ressignificando fatos do cotidiano e provocando discussões.

Mais do que habilidade com os lápis e tintas, o alagoano fala da profissão como um eco da liberdade de expressão e revela como tem sido ser chargista nos dias de hoje.

Há 20 anos, Adnael é colaborador do maior site de humor gráfico do Brasil, o chargeonline.com.br. Adnael, como assina, é um profissional experiente, conhecido por desenhos irônicos. Ainda aos 18 anos, o artista começou a trabalhar profissionalmente em um jornal de Arapiraca e, de lá pra cá, viu sua arte ganhar o mundo. Hoje, Adnael é chargista da Gazeta de Alagoas e diariamente reinterpreta a realidade alagoana e brasileira com a ponta do lápis. Ele já conquistou 2 prêmios e coleciona seleções para grandes salões internacionais. Em 2019, no Salão de Humor de Mogi Guaçu, em São Paulo (SP), Adnael venceu a categoria Charge, com a ilustração que agora ilustra a capa desta edição.

Além de chargista, Adnael possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFAL, uma pós-graduação em Design e outra em Gestão Estratégica em Marketing. Ele também dirige a própria empresa de design gráfico. Na conversa, o artista fala em tempos sombrios e chama atenção para o quão acessíveis as charges são, explicando o potencial viral desses desenhos. Também é possível acompanhar o trabalho de Adnael Silva por meio do Instagram (@adnael_art).


GAZETA DE ALAGOAS - Como é retratar o Brasil de hoje nos seus trabalhos? O que mais te desperta a curiosidade na hora de colocar a mão na massa?

ADNAEL SILVA - No Brasil de hoje, a situação que passa o país, é até uma obrigação se posicionar . Todos os dias surgem vários temas que podem ser explorados e nos sentimos na obrigação de dar nossa contribuição para levantar questionamentos e alertar as pessoas do que está acontecendo, principalmente no relativo à política, que acaba envolvendo todas as áreas - meio ambiente, saúde, educação, emprego, democracia, racismo, entre outros. As redes sociais são uma grande mesa de debates e todo dia surgem fatos que pedem uma charge, um posicionamento.


Sobre o caso recente da perseguição de Renato Aroeira, sobre a charge em que o presidente Bolsonaro aparece próximo a uma suástica. Como você tem lidado com a ameaça de censura?

A censura do Renato Aroeira foi a que teve mais destaque, mas aconteceram também muitas outras, com vários chargistas. No caso do Aroeira, houve um levante voluntário dos chargistas para apoiá-lo, o que foi chamado de “charge continuada”. Mais de 400 chargistas fizeram sua versão da charge em questão e repercutiu no mundo todo. Geralmente quando tentam censurar um chargista, uma opinião, geralmente gera uma visibilidade muito grande do fato que originou o processo, o que acaba sendo um tiro pela culatra do censor. São tempos perigosos, onde estão acontecendo várias tentativas de podar a liberdade de expressão e a charge é sempre um grande alvo. A charge tem um fator muito importante, principalmente nestes tempos sombrios, pois expõe de uma forma simples, bem humorada, rápida e acessível a todos, os maus-tratos que o nosso país está sofrendo, faz rir, faz pensar, e isso incomoda o poder.


Como você analisa a atenção que os chargistas voltaram a ter, agora nas redes sociais?

As redes sociais permitem que uma postagem possa atingir o mundo todo facilmente. Elas permitem que cada um divulgue suas opiniões que podem ser apreciadas ou não pelas outras pessoas. Não é diferente com as charges. As redes sociais permitem que você alcance um público bem maior, tornando-se uma vitrine para seu trabalho, onde as outras pessoas podem, ao compartilhar as charges, multiplicar a visibilidade do chargista. As charges ajudam nos debates dos temas atuais, sintetizam uma opinião, fazem pensar. As pessoas geralmente se identificam com a linha do trabalho de determinado chargista e, a partir daí, vai se criando uma rede de divulgação voluntária. É um jeito fácil, rápido e bem humorado de expressar uma opinião. Muita gente usa a charge para se posicionar politicamente, principalmente em tempos conturbados como os que estamos passando. A liberdade de expressão não é um direito utilizado apenas por artistas ou jornalistas, é uma prerrogativa de todos nós que estamos sob o mesmo manto da democracia. Se aceitarmos que um chargista como o Aroeira perca o direito de se expressar, além de perdermos uma valiosa análise de nossa sociedade, devemos igualmente aceitar que amanhã nossa própria voz pode ser calada, mesmo que seja em uma mera postagem em uma rede social.


É possível manter uma postura imparcial na hora de desenhar?

Geralmente a charge é uma opinião, uma crítica, e sempre tem um lado. Mas para mostrar seu posicionamento, o chargista não pode ser irresponsável. Sua crítica tem que estar embasada por fatos, não pode ser o ataque pelo ataque.


Sempre foi assim, difícil trabalhar com crítica?

As notícias estão aí, todos os dias. E sempre o chargista encontra um modo de representá-las criticamente. Quanto mais ingerência política, mais matéria-prima o chargista tem para explorar, portanto, este é talvez o período mais fértil da história que eu tenha vivido. O Brasil retrocede todos os dias em todos os setores - educação, violência, ameaças à democracia, o trabalhador perdendo seus direitos, o meio ambiente sendo devastado como nunca... prato cheio para a charge. O chargista pode lidar é com a sutileza com que vai fazer a crítica. Existem várias formas de fazer isso, usa-se simbologias, metáforas, comparações que fazem com algumas charges possam ter várias interpretações. Muitas charges sem texto são as melhores, pois a representação desperta na cabeça do espectador o significado, sem precisar palavras, explicações. particularmente, tento fazer a charge em cima do que acredito, ao analisar friamente a situação, para dar a interpretação adequada, com a sutileza necessária a cada situação. A palavra charge significa “carga”. Alguém sempre vai achar que aquele peso foi colocado nas costas dele. Uma frase que não é minha: “não existe charge a favor”.

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