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Caderno B

REVISITANDO MARILYN

Marilyn Monroe foi estrela forjada pela violência de Hollywood, diz romancista de ‘Blonde’

Por WALTER PORTO/ FOLHAPRESS | Edição do dia 18/02/2021

Matéria atualizada em 18/02/2021 às 04h00

| Reprodução

“Ela contemplou seu rosto corado no espelho, não de frente, mas de perfil, com pavor de ver o desejoso rosto comum de Norma Jeane dentro do belo rosto maquiado de ‘Marilyn Monroe’. Dentro dos olhos cuidadosamente pintados de ‘Marilyn Monroe’, os olhos famintos de Norma Jeane.”

Não estranhe que o nome de Marilyn esteja escrito entre aspas, como acontece durante todo o percurso de “Blonde”. O tema maior do livro de Joyce Carol Oates é a construção minuciosa desta personagem, uma das maiores celebridades do cinema americano, sobre a matéria-prima de uma garota normal, a californiana Norma Jeane Baker.

A obra premiada de 20 anos atrás é relançada agora em duas partes, tanto para marcar a estreia da autora no catálogo da HarperCollins quanto para antecipar a adaptação que a Netflix prepara com a cubana Ana de Armas no papel da loira.

O status de obra-prima do livro veio da liberdade épica com que romanceou o terrível conto de fadas da menina pobre que se afoga na opulência de Hollywood.

Curioso é que esse sistema, que forjava celebridades a ferro e fogo para que fossem empacotadas e vendidas a um público voraz, hoje, está praticamente morto, segundo a leitura de Oates.

“Nós não temos mais estrelas como nas constelações antigas”, diz a escritora em entrevista. “Com as redes sociais e a democratização da cultura, o mundo pequeno e rarefeito de menos de uma dúzia de estrelas de Hollywood que bancam as grandes bilheterias não existe mais. Desconhecidos hoje podem ter milhões de seguidores no YouTube.”

“Quando Thomas Jefferson disse que todos os homens são criados iguais, ele talvez estivesse antecipando o mundo das celebridades anônimas, em que qualquer um pode viralizar”, brinca a autora.

A espontaneidade de anônimos, que agora atrai multidões em forma de cliques, contrasta com a figura que estrelaria clássicos como “O Pecado Mora ao Lado” e “Quanto Mais Quente Melhor”, cuja confecção pouco teve de acidental. Aliás, o que havia de natural em Norma Jeane foi cuidadosamente sufocado.

“A beleza de Marilyn Monroe era sintética e produzida pelo estúdio, conforme ela foi se tornando mais popular”, diz a autora, lembrando o ponto de virada como o longa “Os Homens Preferem as Louras”. “A sua beleza natural, de garota, era considerada inadequada.”

Uma cena central de “Blonde” mostra um produtor e um agente imersos num brainstorming sobre qual seria o novo nome de Norma Jeane. “Os homens me ignoraram, falando honestamente entre si como homens fazem –como se eu não estivesse ali.”

As qualidades inatas de Marilyn são perceptíveis no livro –sua curiosidade perspicaz e capacidade única de se relacionar com a câmera, que deixava todos ao redor confusos sobre se estava atuando ou interpretando a si mesma. Mas Hollywood é uma máquina de moer carnes e personalidades.

É como sintetiza um depoimento anônimo do romance –”o problema dela não era que fosse uma loira burra, era que ela não era uma loira e não era burra”.

Mas evoluímos, segundo Oates, para um mundo de expectativas menos padronizadas. “Hoje, mulheres e garotas são deslumbrantemente individuais, e nenhuma descrição mais consegue capturar toda a sua variedade. Devemos ter em mente que, nos Estados Unidos de antes, seria suicídio profissional sugerir que alguém era bissexual ou homossexual, como Rock Hudson. Hoje, ninguém mais se importa.”


Foto: Reprodução
 

Irônico é que, segundo ela, Marilyn siga como um dos ícones mais populares no Twitter –rede social, aliás, em que a autora de 82 anos, um dos maiores nomes da literatura americana, é bastante ativa. Nesta semana, ela tuitou e retuitou furiosamente notícias sobre o processo de impeachment de Donald Trump.

Progressista que é, a escritora destaca que outro acontecimento recente guarda relação umbilical com a história de Marilyn. “O MeToo revelou que mulheres e garotas demais continuam vítimas da dominância masculina, em particular na indústria do entretenimento. Muito difícil erradicar esse machismo quando os chefes continuam majoritariamente homens.”

Norma Jeane Baker, nas páginas do livro, sofre os efeitos mais perversos disso. Só no primeiro volume, há estupros e assédios por parte de figurões da indústria, uma infância marcada pelo abandono paterno e uma adolescência invadida pela incapacidade dos homens de se controlarem perto de seu corpo curvilíneo.

Num episódio dramático, Norma Jeane é expulsa pela dona do lar que a adotara porque seu marido não conseguia parar de salivar por ela. “Se pudesse ela teria expulsado Warren aos chutes e ficado com Norma Jeane –mas é claro que não podia. É um mundo de homens e para sobreviver uma mulher precisa trair sua própria classe.”

Aqui é bom pausar para apontar que “Blonde”, desde o prefácio, deixa claro que não é uma biografia comum, mas uma ficção. Ainda que todos os fatos essenciais da vida de Marilyn estejam ali, a autora toma a liberdade de mudar nomes, condensar e criar narrativas, inventar até livros fictícios.

Deixemos que a própria autora explique. “’Blonde’ é uma quase autobiografia pós-modernista, uma exploração dos fundamentos fabulares do sonho americano, que se sobrepõe ao conto de fadas de Cinderela”, afirma. “Numa biografia, a meticulosidade é essencial. O diálogo é imaginado num romance, claro, mas as circunstâncias não precisam ser inventadas.”

É leviano sair à procura da moral de histórias verdadeiras, ainda mais uma que terminou tão tragicamente aos 36 anos, como a de Marilyn Monroe, vítima de uma overdose. Mas ainda é possível encontrar pérolas que ajudam a entender o mundo, como esta breve cena que se segue ao momento em que Norma Jeane Baker é rebatizada.

“Eu disse a mim mesma, minha vida nova! Minha vida nova começou! Começou hoje!”, exclama a atriz. “Só agora está começando, tenho 21 anos e sou Marilyn Monroe. E um homem falou comigo no bonde como homens fazem com frequência. Perguntando se eu estava chateada com algo. Se ele poderia ajudar. Eu disse a ele com licença eu preciso descer, este é meu ponto e com pressa desci do bonde.”

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