Gazeta de Alagoas
Pesquise na Gazeta
Maceió,
Nº 5691
Caderno B

29 POETAS

Coletânea ‘As 29 Poetas Hoje’ traz voz explosiva de mulheres que viram no corpo uma luta

Por FRANCESCA ANGIOLILLO/ FOLHAPRESS | Edição do dia 25/02/2021

Matéria atualizada em 25/02/2021 às 04h00

| Divulgação

Neste momento, a poesia explode. A dinamite, o pavio, a pólvora são as diferentes vozes de mulheres moldadas na quarta onda feminista. Essa combustão não passou despercebida aos olhos de Heloisa Buarque de Hollanda e ganha forma numa coletânea publicada pela Companhia das Letras, “As 29 Poetas Hoje”.

Helô, como a pesquisadora de 81 anos é conhecida, ligou o radar para a poesia recente feita por mulheres durante o processo de publicação de “Explosão Feminista”, livro de ensaios que lançou no fim de 2018. “Levei um tempo tricotando essa antologia”, diz. Nesse tempo, percebeu que estava revivendo um processo de décadas atrás, quando lançou “26 Poetas Hoje”.

O hoje daqueles poetas era 1976, o Brasil vivia a ditadura, e a seleta impulsionou o movimento que já era rotulado como “poesia marginal”. O livro volta ao catálogo agora, em edição de bolso, um formato que possivelmente agradaria aos autores.

Quando organizou “26 Poetas Hoje”, Helô já vinha armazenando o material que invadia as calçadas do Rio de Janeiro sob forma de livretos impressos em mimeógrafo. “Você ia ao cinema e tinha três poetas no mínimo vendendo livrinho; você ia jantar e tinha mais três. Em qualquer lugar que você fosse, você era atacada por venda de poesia”, rememora Helô. “Você acabava comprando para se livrar.”

Ela fala de modo jocoso sobre como iniciou seu interesse, mas o fato é que capturou algo no ar. Enquanto a polícia de costumes estava de olho no teatro, no cinema, aqueles poetas, “que ninguém ia ler”, os militares não pensavam em censurar, conta.

“Percebi que estavam trazendo uma coisa muito importante, que era o testemunho de uma época. Ninguém contava sua experiência sob a ditadura. Essa juventude contou.”

Havia uma premência em “juntar vida com arte, uma coisa perigosíssima que podia dar em nada”, diz Helô. “Produziu coisas lindas, mas muita coisa banal, porque arte não é igual à vida, se você não tiver o mínimo de distância entre as duas fica uma baboseira.”

Isso explica a recepção que o volume, sua estreia como organizadora de livros, teve, tanto pela crítica acadêmica quanto pela imprensa. “Comecei mal para burro”, diz, rindo e lembrando depois que, se alguns poetas ali revelados sumiram, outros se tornaram canônicos.

Era uma amostra bem variada, da qual faziam parte Chico Alvim e Cacaso -que já tinha uma obra e era professor, na PUC carioca, de outros poetas da antologia- mas também iniciantes como Ana Cristina Cesar, inédita mesmo nos livretos marginais.

Ana Cristina, ou Ana C., referência seminal para a poesia feminina hoje, é uma das poucas mulheres publicadas na seleta de 1976 -foram 5 dos 26, mais precisamente.

“Tinha muito livro de mulher”, diz, mas “não tinha mulher escrevendo daquele jeito, tinha muita poetisa, naquela época não era nem poeta”.


Foto: Divulgação
 

O jeito a que se refere Helô era em linguagem coloquial, com direito a palavrões, falando de coisas cotidianas num registro que se queria antiliterário, numa espécie de resposta às vanguardas, como o concretismo paulista.

Em comum, “uma paranoia que liga todos”, diz Helô. Mas era essencialmente “a classe média branca expressa na primeira antologia”.

Hoje não. “A diversidade existe, escreve e escreve bem”, diz a organizadora. Pois, mais que variada, a nova amostra é diversa. São mulheres “de todas as cores e sexos” -brancas, negras, indígenas, trans, cis, lésbicas, de diferentes regiões. Várias são ativistas e multiartistas. Todas, diz Helô, nasceram do feminismo da quarta onda, que ganhou fôlego no Brasil a partir das marchas de junho de 2013.

Para a seleção Helô contou com a ajuda de Julia Klien, que trabalhara com ela em “Explosão Feminista”. Na antologia de 1976, diz, foi muito fácil entrar no mundo da poesia. “Era a minha vida, essas pessoas jantavam comigo”, diz. “Nesse caso, quem jantava era a Julia, ela carregou a vovó junto.”

Estupro, assédio, as imposições sobre como deve ser o corpo feminino, sobre como deve ser um corpo negro, mas também o desejo pelo corpo alheio, masculino ou feminino, aparecem sem meios tons nos versos das 29 poetas.

Há também uma multiplicidade de formas expressivas; poemas que rimam e que não, poemas em prosa, em cordel, textos originariamente ditos em slam. Por causa das autoras da poesia falada, aliás, o livro traz uma novidade -por meio de QR codes, é possível escutá-las. A ideia inicial era que as slammers pudessem levar sua performance para o papel, que não era seu suporte original.

Foi Alice Sant’Anna, editora do livro, quem sugeriu “abrir o microfone” para todas -a maioria aceitou o convite. Também poeta, Sant’Anna está no livro, aliás, ao lado de outras quatro mulheres que, para Helô, compõem um “jovem cânone da poesia de mulheres” -Angélica Freitas, Marília Garcia, Ana Martins Marques e Bruna Beber.

Nenhuma tem poemas, porém, no corpo da antologia. “Elas têm um projeto poético muito diferente’’, afirma a organizadora. “Seria injusto não estarem, mas ao mesmo tempo errado estarem.”

O jeito foi pôr a obra delas num lugar de precedência. Na introdução, são lidas e analisadas como uma transição entre Ana C. e as contemporâneas. Helô faz uma análise da poesia dessas cinco autoras à luz das indagações de Ana C., que era também ensaísta. Seria possível fazer “literatura de mulher” sem cair em fórmulas poéticas -o “eterno feminino”- ou políticas -ocupando o lugar do feminismo?

Segundo Ana C., havia um “sintomático calar de temas de mulher”. Esse silenciamento, afirma Helô, já não existe, e a poesia das mulheres por ela selecionadas indica isso, ao pôr no centro o corpo feminino.

Pela primeira vez, afirma a crítica, “você pode falar da menstruação, do seu parto, do boy que foi embora, do boy que era gay e você não sabia”. O corpo da mulher, diz, “virou instrumento de luta, e não um problema”. “Isso não é da minha geração, eu ainda fico puxando a saia para baixo.”

Mais matérias desta edição